Três foi a conta que Deus fez, e escreveu em Holandês
Um triângulo é uma figura geométrica sem linhas paralelas. Três pontos que se opõem, unidos por duas linhas. Dou por mim num triângulo geográfico peculiar: o triângulo do pecado, da inocência e do religioso. Um triângulo de três pontos que pareciam ser distantes, mas unidos por linhas sem paralelismo.
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Estamos no De Wallen, mais precisamente na Oudekerksplein. Dito assim, não significa nada para muitos, mas para quem (re)conhece os bairros de Amesterdão pelos nomes, sabe que nos referimos ao mítico Red Light District, mais concretamente à “Praça da Igreja Velha”. À nossa frente, numa grande e escura porta de ferro, lê-se “Prostitutie Informatie Centrum” — que não precisou de grande tradução. Este é o primeiro ponto deste triângulo: o centro / associação de apoio às prostitutas de Amesterdão. Não surpreenderia a sua localização, até porque afinal estamos mesmo no coração do Red Light. Mas nas nossas costas, está o ponto número dois: a tal igreja, a Oude Kerk, que até dá nome à rua. Imponente e gótica, com mais de 800 anos de história. E mais extraordinário ainda, é o que alcança a nossa visão periférica: duas portas abaixo, está o ponto número três, um infantário.
Seguro, com firmeza, o copo de café que comprei duas ruas acima. Serve-me dois propósitos distintos: aquecer as mãos nesta manhã fria de Inverno, mas acima de tudo, manter-me bem desperta para o cenário que observo. Comigo está a Maartje, que partilha comigo esta visita guiada. A Maartje é Holandesa, mas vem de Maastricht, que fica no Sul, espremido entre a Bélgica e a Alemanha. Para nenhuma de nós é a primeira visita ao Red Light, mas para ambas, é a primeira visita oficial ao centro histórico de Amesterdão. O nosso guia é o director da Universiteit van Amsterdam, e que trabalha também na Camara da cidade. O seu cabelo grisalho, o casaco quente, as bochechas rosadas, o ar simpático e divertido, e a idade já avançada, fazem com que toda a situação se torne ainda mais caricata. É como ter o meu Avô a fazer-me uma visita guiada por um bordel. Isto, não estivéssemos nós em Amesterdão.
São apenas 10 da manhã, mas muitas das trezentas e uma “janelas” do Red Light já estão em funcionamento. Ao lado da entrada do infantário, uma mulher faz o turno da manhã numa das janelas. Não aparenta ter grande vontade. Tem um ar sisudo e uma atitude matrona. Um ar de grande frete! Tem, claramente, excesso de peso e enverga uma roupa mínima, demasiado apertada para a sua figura robusta. A pele escura e o vermelho da lingerie quase que lhe permitem camuflar-se nas características do bairro: as paredes da arquitectura tradicional de Amesterdão, no seu esplendor gótico, também se vestem de escuro, e todo o Red Light enverga lingerie vermelha, cor das suas lâmpadas tubulares e pesados cortinados de veludo a denunciarem as janelas que estão “ocupadas”.
Bebo mais um trago do meu café para me despertar do cenário. A entrada do infantário é um grande portão cinzento, que não deixa vislumbrar nada do que se passa para lá das suas paredes. Faltam os típicos bonecos decorativos que nos habituámos a ver nos exteriores dos infantários: as cores alegres, as árvores pintadas, as flores, as letras gordas e os nomes fofinhos. Quem não prestar atenção, nunca iria acreditar que aquilo é, na realidade, um infantário. Faz esquina com a Oudezijds Voorburgwal (o canal onde ficam os urinóis mais empestados da zona) e com a imponente Oude Kerk. Sente-se ainda, por todo o lado, o cheiro característico das coffeeshops.
Aproximamo-nos do portão do infantário para uma inspecção mais minuciosa: se não fossem os pequenos desenhos colados nas janelas com ladrilho branco aos quadradinhos — também este típico da arquitectura da época — seria difícil conseguir imaginar as crianças que estão brincam lá dentro. Mas a pequena chapinha de metal na porta não deixa espaço para erros — “de kleuterschool” — é mesmo um infantário!
Mais café. E oiço de novo a voz do nosso guia. Explica-nos, orgulhoso, a história da Oude Kerk. À boa moda Holandesa, é uma igreja que não se prende à religião: é aqui a sede do famoso World Press Photo, a organização que todos os anos premeia as melhores fotografias de jornalismo do mundo, dando lugar a uma gigante exposição itinerante que inaugura precisamente aqui, na Oude Kerk, e percorre cerca de cem cidades, todos os anos.
Vamos caminhando até à porta da igreja, onde ele subitamente pára e pede para olharmos para o chão. Por entre as pedras da calçada — também ela escura, claro — reparamos que faltam quatro das pedras. A substitui-las, está uma pequena escultura em bronze: de forma bem realista, representa os seios de uma mulher, com uma mão de uma pessoa a segurar no seio direito. Este pequeno seio de bronze representa tanto o pecado da carne (as prostitutas do Red Light), como o leite materno (o infantário). Reza a história, que Deus criou a mulher para criar e alimentar os seus filhos, mas que o homem também fez disso a sua luxúria. É a criação divina que Deus quer por perto. E que estão ali representados — sem pretexto religioso e sem classe social definida. Resume assim a incontornável triangulação deste bairro, de três pontos que se unem por linhas que nunca são paralelas.
Quando quero dar um último trago no meu café, noto que já terminou. Numa próxima, talvez opte antes por um jenever, esse típico licor holandês tão apreciado por poetas, artistas, marinheiros, e por quem procura atento às pequenas histórias geométricas nos recantos de Amesterdão.